Saudades
Saudades
Nos contos de fadas aparece sempre uma madrasta que é considerada um infortúnio, que o digam a Bela Adormecida e a Branca de Neve, heroínas preferidas das histórias infantis que me contava a minha Avó. A minha não é assim tão má, mas as crianças sentem o que sentem e há muito tempo que eu sei que não sou a menina dos seus olhos.
O meu Pai, do seu novo casamento, tem duas filhas, a Joana e a Mariana, e eu sei que ele gosta bem mais delas do que de mim.
Às vezes, quando, pela noitinha, passam pela janela do meu quarto os faróis dos automóveis, brilhando primeiro numa parede e depois noutra, até desaparecerem, ou quando ouço o roncar de um motor ou o chiar de um pneu, penso:
“É o meu Pai!”
Mas nunca é, ou quase nunca. E eu tenho saudades, saudades do seu riso cristalino como as águas dos rios e da sua voz macia como as asas das borboletas.
Não sei exactamente como explicar o que são “Saudades”, só sei que doem, doem como quando levamos um murro no estômago e queremos vomitar, o coração para e a tristeza sobe na nossa garganta como uma espécie de nó cego, muito apertado, até que as lágrimas vêm em nosso auxílio. Depois fechamos os olhos e aceitamos. Mas dói aceitar.
As saudades curam-se como as doenças, como as gripes. Só que um dia, quando já não nos lembramos, acabam por voltar com pezinhos de lã.
Sempre que eu tenho saudades, é assim que eu sinto, mas depois adormeço e quando a manhã acorda, da cozinha da minha Avó, sobe um delicioso
aroma a chocolate. Eu corro até lá e pergunto:
- Avó, quando a minha mãe morreu, porque não ficou o meu Pai comigo?
A minha Avó levanta um olho e depois outro e não responde, a não ser que eu considere resposta a maneira furiosa como ela desata a limpar o chão, o fogão, as paredes…
Nesse momento, as coisas ficam mais claras na minha cabeça:
O meu Pai não me quis ou, muito simplesmente, não soube cuidar de mim, que isto de uma criança pequena deve dar muito trabalho.
Então suspiro baixinho e parece que passam cem anos até a minha Avó responder:
- Não é bom olhar para o passado, porque o passado é um armário cheio de esqueletos e fantasmas.
Então penso que ela tem razão, abraço-a e sou feliz.
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